Planeamento e Periodização do Treino no Trail Running
17/02/2022

Com o grande crescimento quantitativo e qualitativo que o Trail Running tem tido nos últimos anos ao nível de atletas e eventos, também se tem verificado um exponencial crescimento na quantidade e qualidade de stakeolders com interesses económicos. Refiro-me a lojas de equipamento desportivo e suplementos alimentares, empresas e associações na organização de eventos, nutricionistas, fisioterapeutas, treinadores, etc.

Escrevo este artigo principalmente para evidenciar um pouco o trabalho dos últimos, e como o planeamento e periodização do treino pode ser pensado e planeado.

Exemplo de esquema da dinâmica do volume e intensidade da carga global no ciclo anual de treino. Adaptado de Matvéiev (1990, p.49)

O treinador é quem pensa, idealiza e planeia o treino para a época desportiva do atleta, tendo como principal objetivo a melhoria da condição física. Para isso, deve ter em conta diversos aspetos biológicos, metodológicos, sociais e psicológicos: individualidade biológica do atleta, parâmetros fisiológicos avaliados (limiares e VO2máx), efeito residual das cargas de treino, calendário e objetivos competitivos, disponibilidade para o treino, vida pessoal, profissional e social do atleta, e todas as outras áreas científicas que interferem no treino, tais como:

  • Psicologia: preparação mental e volitiva do atleta;
  • Sociologia: socialização entre os diversos atores do desporto;
  • Fisioterapia e medicina: prevenção e tratamento de lesões;
  • Cinesiologia e biomecânica: melhoria da técnica e respetiva eficiência da corrida;
  • Fisiologia: estudo dos efeitos agudos e crónicos do exercício no organismo.
Esquena da teoria geral de planeamento do treino. Adaptado de Verkhoshansky (1988, p.12)

O planeamento do treino desportivo apresenta-se como uma ferramenta útil e fundamental para a melhoria da condição física do atleta, seja ele amador ou profissional, independentemente da modalidade desportiva praticada. Sendo o planeamento do treino uma tarefa complexa, apesar de existirem diversas opções que permitem atingir o mesmo fim, o treinador tem de eleger os meios e métodos de treino que melhor respondam às necessidades e exigências do treino para aquele indivíduo. Sequenciar as diversas tarefas tendo em conta os “PRINCÍPIOS DO TREINO”, de forma a conseguir que o atleta evolua e melhore ou mantenha o máximo rendimento desportivo ao longo da época desportiva e nos períodos exatos.

De forma a organizar as cargas de treino para que o atleta evolua de forma equilibrada e vá melhorando as suas capacidades progressivamente, é necessário periodizar estas por ciclos, onde se dará mais ou menos importância a determinada capacidade numa determinada fase da época desportiva.

Pode-se definir periodização do treino como a “planificação geral e detalhada do tempo disponível para o treino, de acordo com os objetivos intermédios perfeitamente estabelecidos, respeitando os princípios científicos do exercício desportivo" (Dantas, 2012,p. 41).

Apesar não não haver receitas mágicas ou formas únicas de pensar e planear o treino, existem alguns autores que em tempos colocaram na prática as suas ideias sobre planeamento e metodologia do treino. Documentaram estas, permitindo assim que qualquer outro tenha acesso a estas ideologias e as possa aplicar ou adaptar aos seus casos em particular.

Matvéiev foi o pioneiro, sendo a sua ideologia sobre o planeamento do treino apelidada de “Periodização Clássica”, de onde posteriormente derivaram outras metodologias. Esta geralmente é simples ou dupla, dependendo do nº de picos de forma pretendidos ao longo da época. De uma forma resumida, a periodização clássica caracteriza-se por ter uma variação ondulante das cargas de treino, dividida em 3 períodos ao longo da época desportiva:

  • Preparatório (Geral e específico)
    • Objetivo: melhorar as capacidades físicas de base do atleta;
    • Geral:
      • Preparação física da componente geral do treino;
      • Predomina o volume sob a intensidade;
    • Específico
      • Aperfeiçoamento das habilidades técnicas e táticas;
      • Redução progressiva do volume e aumento da intensidade;
  • Competitivo:
    • Objetivo: atingir o pico de forma para a competição;
    • Trabalho específico para a prova;
    • Predominância da intensidade sob o volume;
  • Transitório:
    • Objetivo: proporcionar a recuperação física e psicológica do atleta;
    • Predomina a recuperação ativa.
Ciclo de treino na periodização clássica e comtemporânea (Valdivielso, 2001, p.16)

Entretanto outros autores implementaram e documentaram metodologias de treino com ideias ligeiramente distintas, ficando conhecidas como "metodologias contemporâneas". Estas tinham como principal objetivo permitir que o atleta atingisse vários picos de forma na mesma época desportiva, através da realização de vários ciclos completos de treino. Os autores referem que estas metodologias adaptam-se mais a atletas com elevados níveis de condição física.

Verkhoshansly pensou a periodização do treino de forma a que o atleta tivesse vários picos de forma ao longo da época desportiva, através da periodização por blocos de treino de carga concentrada:

  • Programação:
    • Objetivo: preparar o atleta para suportar cargas de maior exigência
    • Maior volume da época desportiva
  • Organização:
    • Objetivo: permitir que o atleta aperfeiçoe as capacidades especificas da competição;
    • Redução do volume e aumento da intensidade;
    • Ocorrência de provas competitivas de treino.
  • Controlo:
    • Objetivo: potenciar o atleta para que este se encontre na sua máxima capacidade física no momento da competição;
    • Controla-se o estado físico do atleta.
Sobreposição de efeitos residuais de treino, induzidos por blocos de treino sequenciais. Adaptado de Issurin (2016, p.29)

Issurin e Kaverin foram os autores da metodologia ATR, muito idêntica à metodologia por blocos de Verkhoschansky. Esta forma de planear e periodizar o treino permite igualmente que o atleta atinja vários picos de forma ao longo do ano, através de 3 blocos sequenciais que se podem repetir várias vezes na mesma época desportiva. Cada bloco tem elevadas cargas de treino concentradas para um objetivo específico, estando estas interligadas num processo de desenvolvimento de treino específico.

  • Bloco de acumulação:
    • Objetivo: melhorar a preparação física e a vertente técnica e tática básicas;
    • Duração: 2 a 6 semanas;
    • Efeito residual alto, devido ao elevado volume e intensidade média de trabalho aeróbio geral e especial, e força máxima.
  • Bloco de transformação:
    • Objetivo: melhorar a preparação física especial e competitiva e os aspetos técnicos e táticos;
    • Duração: 2 a 4 ssemanas;
    • Efeito residual médio, devido à redução do volume e aumento da intensidade;
    • Foco no trabalho anaeróbio lático e força rápida de resistência.
  • Bloco de realização:
    • Objetivo: atingir o pico de forma para a competição;
    • Duração: 1 a 2 semanas;
    • Foco nos exercícios de força rápida, pliometria e velocidade;
    • Trabalho de recuperação ativa e passiva.

Bondarchuck, mais recentemente planeava o treino de uma forma distinta, tendo desenvolvido a periodização individualizada, baseada no princípio da adaptação e da individualidade biológica do atleta. Dividia igualmente a preparação em 3 períodos:

  • Desenvolvimento: desenvolvimento das capacidades físicas condicionantes;
  • Manutenção: melhoria da componente técnica e tática;
  • Descanso: descanso ativo e aplicação de exercícios de ênfase especial e um pouco competitivos.
O treino polarizado, não sendo considerado uma metodologia de planeamento do treino, é essêncialmente um método de organização das cargas de treino, onde:
  • 80% do volume de treino em baixa intensidade, abaixo do 1º limiar ventilatódio;
  • 20% do treino em alta intensidade, acima do 2º limiar ventilatório;
  • Favorece a recuperação muscular.
Nuno Silva, UTG - Ultra Trilhos da Gardunha

Estas são algumas metodologias de planeamento e organização do treino durante a época desportiva, tendo todas o mesmo objetivo: potenciar o rendimento desportivo do atleta.

No entanto, apesar destes ideais estarem bem definidos, o treinador deverá adaptar o treino a cada caso específico, pois as competições de Trail Running não ocorrem num curto espaço temporal da época. Estão geralmente distribuidas ao longo de toda a época, sendo os calendário competitivos de cada praticante distintos dos demais. Assim, estas metodologias de treino devem ser encaradas como “linhas orientadoras”, podendo o treinador adaptar diversos parâmetros de cada uma, de forma a elaborar o planeamento e periodização do treino que melhor se adequa a cada caso.

Para isto, deve ter um elevado pensamento crítico e ser muito rigoroso, pois "a habilidade de um treinador profissional reside na capacidade de elaborar e implementar uma organização racional e adaptada às situações reais" (Valdivielso, 2001, p. 20).

Autor:
Miguel Baptista
Fisiologista do Exercício
Referências:
  1. Dantas, E. H. M. (2012). La Práctica de la Preparación Física. Editorial PaidoTribo, Barcelona
  2. Issurin, V. B. (2016). Block Benefits and Limitations of Block Periodized Training Approaches to Athletes’Preparation: A Review. Sports Medicine. doi: 10.1007/s40279-015-0425-5
  3. Matvéiev, L. P. (1990). O Processo do treino Desportivo. Livros Horizonte, Lisboa
  4. Matvéiev, L. P. (1990). O Processo do Treino Desportivo. Livros Horizonte, Lisboa
  5. Matvéiev, L. P. (1991). Fundamentos do treino Desportivo. Livros Horizonte, Lisboa
  6. Valdivielso, F. (2001). Modelos de planificácion según el deportista y el deporte. Deporte y actividad física para todos. Comité Olímpico Español, 11-28
  7. Verkhoshansky, Y. V. (1988) Programming and Organization of Training. Sportivny Press, Michigan